Pandemia! Janela de oportunidade para o capital educador

Artur Gomes de Souza[1]
Olinda Evangelista[2]

Dolorido viver num país quando uma pandemia que ceifa milhares de vidas é simultaneamente anunciada como “oportunidade”. Do ponto de vista do capital, passa um bonde que a burguesia não pode perder: o bonde da Educação Básica e sua transformação no deserto do Ensino Remoto[3], a despeito de todos os outros problemas sociais e econômicos que sobrevirão. Esse avanço vem sendo programado há muito tempo, mas só agora encontrou as condições objetivas para ser apontado como grande solução e, principalmente, universalizado nas redes públicas e privadas de ensino que comportam, nada mais nada menos, que 47,9 milhões de matrículas e 2,2 milhões de docentes em 180,6 mil escolas (INEP, 2020)[4].

Quando, em 2018, Bolsonaro, em campanha para a Presidência da República, vociferou que todos os níveis de ensino poderiam ser a distância, ele não falava só; estavam ali, à espreita de novos mercados, grandes capitais de Ensino Superior, empresários da Educação e Aparelhos Privados de Hegemonia articulados para a defesa de seus interesses, entre eles a Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED), cuja presidente é irmã do atual Ministro da Economia, Paulo Guedes.

A pandemia vem sendo chamada para justificar mudanças profundas que se pretende impingir à rede pública de ensino, não apenas durante ela mas, especialmente, após. A quarentena tem recebido a designação eufemística de “período de transição” para o modelo de ensino remoto – ou aprendizagem virtual, tecnológica, digital e mesmo educação a distância – que se estabilizaria e manteria como regra na Educação Básica. Não é sem razão que a OCDE (2020) e a UNESCO (2020) sugerem aos países em quarentena que revejam seus marcos legais para que as alterações possam ser “operacionalizadas” já e possibilitem sua permanência em seguida. As suas orientações, somadas às do Banco Mundial, abrangem um amplo conjunto de flexibilizações: dos currículos, da avaliação, dos métodos de ensino, da jornada letiva, das certificações, dos materiais didáticos. De outro lado, defendem a tese da incapacidade dos professores para lidarem com a situação, resultando na proposta de reconversão docente via formação contínua, “ágil e efetiva”, tendo em vista superar a deficiência. A formação de gestores e familiares também está no horizonte, seja porque é preciso uma liderança competente, seja porque os pais teriam necessariamente de se transformar em “auxiliares de ensino”.

É translúcido que toda essa movimentação precisará de um sistema de monitoramento – que generosamente as empresas de tecnologia ofertarão, com custos –, melhor dizendo, um sistema de vigilância bastante bem articulado, monopolizado, quiçá. Essas diretivas estão em andamento… Elas funcionam (?) conectadas por celular, por computador, por tablets, por meio de plataformas online, pela televisão, pelo rádio, por aplicativos, pela entrega de kits ou materiais impressos, e outras formas que a “criatividade” e a “autonomia” dos sujeitos envolvidos venham a criar e a replicar, a exemplo das práticas exitosas. Embora nos documentos haja referências às regiões com dificuldades de conexão à Internet ou até de acesso aos materiais impressos, a grande solução é que o Estado faça a devida provisão… o mesmo Estado que é protegido em sua política deliberada de degradar a escola pública, em qualquer nível, assim como toda a área social. Elide-se o movimento empresarial que corre por baixo dessas indicações, incluindo altos empréstimos para manter a capacidade de investimentos de certas empresas[5]. Elide-se, ademais, as consequências perversas sobre as relações de trabalho; a OCDE, antevendo esse impacto, orienta para que nesse período novas habilidades sejam garantidas a professores e “comunidade”, pois certamente haverá uma “realocação” dos trabalhadores nos mercados de trabalho. O fantasma do desemprego que a todos ronda deve sensibilizar os sindicatos no sentido de que sejam compreensivos com as novas formas contratuais que emergirão na quarentena e se consolidarão após. Tanta preocupação tem apenas um sentido: solapar as formas organizativas de estudantes e professores; empurrar goela abaixo da classe trabalhadora, lembremos sempre, formas ainda mais intensificadas e precarizadas de trabalho para que as taxas de lucro aumentem ou não diminuam. 

Sim! O “humanitarismo” está à frente dessa marcha para a escola básica pública. Contudo, os argumentos humanitários que correm na mídia – cumprir calendário, garantir 800 horas de trabalho, assegurar a “continuação da aprendizagem”, “mitigar” as desigualdades do Brasil, “impedir” as perdas cognitivas, cuidar da saúde psíquica, prover alimentação – escondem um jogo fratricida de lesa humanidade. Está em causa o fortalecimento de um mercado educativo que – consolidado em nível superior – busca novas fronteiras de investimento e enriquecimento. Nada de ilusões! O grupo Cogna, por exemplo, oferece mais de 30 cursos on-line, gratuitos no momento, para professores da rede pública de educação básica que poderão escolher diretamente na plataforma Programa de Formação de Professores (PROFS)[6]. Os estudantes também são um foco importante dessa estratégia: a Estácio de Sá e a Eleva[7] criaram a plataforma Resolve Sim para estudantes do Ensino Médio em fase de realização do ENEM[8].

A “experiência exitosa” de “eadeização” e mercantilização da formação docente em nível superior é uma objetividade histórica considerada positiva em termos de acúmulo de capital[9]. Este “sucesso” na formação de professores no formato de Educação a Distância (EaD) (ou remota, na versão para a Educação Básica), confirma a “janela de oportunidades” que se abriu, estranhamente favorecida pela Covid 19. Exporemos o caso do Ensino Superior brasileiro para, em seguida, sugerirmos algumas reflexões preliminares no que se refere aos seus desdobramentos para a Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.

O caso do Ensino Superior

Lidar com os números no Brasil é tarefa triste, pois dimensionamos o tamanho da desigualdade em todas as áreas. Os dados de 2018 fornecidos pelo IBGE (2019), evidenciam que apenas 25,2% dos jovens entre 18 e 24 anos frequentavam ou haviam completado cursos de educação superior no país, dos quais quase três quartos no setor privado.

Em 2018, o número de matrículas no ensino privado no Brasil chegava ao violento percentual de concentração de 75,4% (6.373.274) dos hipotéticos estudantes no nível superior! Só no setor particular concentravam-se 4.241.031 (50,2%) de matrículas,  1.635.555 (39%) na modalidade EaD. A conclusão é óbvia: pouco restava, e resta, às instituições públicas de jovens em formação. Os capitais que investem nas primeiras vêm sendo bem-sucedidos em conformar a substância e os conteúdos dos processos educativos. A apropriação de escolas particulares por monopólios tem conduzido à demissão de professores doutores; à contratação de especialistas e graduados; à proliferação de apostilas, kits e resumos; à redução de carga horária, especialmente nas disciplinas teóricas; à qualificação pragmática em serviço; à substituição progressiva do ensino presencial por cursos a distância, parcial ou integral e à oferta de formação por tutores e facilitadores sem formação. Quer-se transformar o professor em mero instrumento multiplicador de largo alcance, repondo-se a racionalidade instrumental da Teoria do Capital Humano: importa menos o ser social e mais as condições adequadas para a acumulação de capital. O esvaziamento do preparo do professor o deixa refém de uma miríade de produtos postos à venda pelos negociantes da educação. O drama aí inscrito – a existência humana sob o domínio do capital – não interessa e não pode atrapalhar a objetividade do brocardo “lucro acima da vida”.

Do ponto de vista do Estado e do capital, tudo se resume à preparação da força de trabalho e potencialização das condições de sua exploração, seja no âmbito das escolas de formação, seja como resultado do trabalho dos professores (alunos=trabalhadores). A isso conduz a captura e reconfiguração da formação de professores pela exploração privado-mercantil das grandes instituições de ensino superior, processo fortemente alavancado a partir da financeirização dos capitais no ensino superior que, em profunda conexão com a política estatal, articularam formas de desregulamentação do ensino e da formação, com processos altamente complexificados de apropriação do fundo público e sua consequente conversão em fundo de acumulação de capital.

Esse rentável mercado foi induzido por políticas educacionais federais, após os anos de 1990, em consonância com o seu crescimento desde o final da década de 1960, que implementaram a EaD primeiramente em universidades públicas, caso da Universidade Aberta do Brasil. No campo da expansão e (suposta) democratização do ensino superior, no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) a modalidade EaD ganhou expressiva expansão, com o salto de 11.853 matrículas públicas, em 2003, para 278.988, em 2008. Contudo, em 2009 , o cenário estava completamente alterado com 173 mil matrículas: número mantido e reduzido em 2018, com 172.927 (9%). Em 2018, as instituições privadas ofertaram 1.883.584 matrículas na modalidade EaD, o que representa 30% do total das matrículas privadas. Das novas matrículas privadas no Ensino Superior brasileiro, em 2018, 46% foram na modalidade EaD. A expansão dessa modalidade foi tão forte no setor privado que, faltaram somente 20.970 matrículas para ultrapassar as públicas presenciais. No caso das Licenciaturas, das 1.628.676 matrículas públicas e privadas 816.888 (50%) eram na referida modalidade.

No que tange à formação para o trabalho simples, que o curso de Pedagogia é muito importante, pois vocacionado ao preparo de docentes para a Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental, ou seja, à formação de vastos segmentos da classe trabalhadora. Em 2018, suas 747.511 matrículas correspondiam a 45,9% das 1.628.676 matrículas em licenciaturas. Deste percentual, 473.607 (63%) cabiam a IES particulares, com fins lucrativos; 369.028 (49%) sob a modalidade EaD. Considerando o conjunto de escolas privadas, o total é aterrador: 616.393 (82,5%) das matrículas nestes cursos foram por elas absorvidas. Esse exemplo evidencia a subida vertiginosa da modalidade EaD nas IES particulares que formam professores. Ainda em 2018, o número de professorandos concluintes na modalidade EaD, em IES privadas, atingiu o percentual de 42% (105.080). Esse número é maior do que o de formados em escolas públicas, presenciais (64.876) e EaD (12.303). Das novas matrículas em licenciatura, em 2018, 393.816 (64%) são em EaD, 358.950 (91%) em IES privadas: o preparo do magistério no Brasil está na esfera privada e substantivamente nas mãos do grande capital!

Trata-se dos modos específicos pelos quais o processo de concentração e monopolização dos capitais no ensino superior implicaram no alargamento do processo de reconversão da formação docente, com vasto alcance sobre a formação da juventude e de laços geracionais na vida nacional. O capital ocupa-se duplamente: por um lado na permanente revolução das suas formas de expropriação de mais-valor (valorização do valor) e, por outro, na busca por conformação da força de trabalho a essas próprias formas. O capital se arroja nas dimensões mais propriamente humanas para abarcar totalmente as formas de organização do pensamento, da subjetividade e das vontades coletivas. Revela-se, então, aqui uma pequena fração desse movimento: a de que o educador precisa ser educado (MARX, 2011) e o capital toma a tarefa com maestria.

Milhares de estudantes desejam realizar uma formação superior; por um complexo conjunto de processos sociais, submetem-se a pagar mensalidades, única saída, com bolsas ou financiamentos públicos ou privados. Instituições, grupos de ensino ou consórcios intercapitalistas asseguram mais uma maneira de apropriação do fundo de vida dos trabalhadores sob a forma dos juros incidentes sobre o montante geral das mensalidades financiadas, refinanciáveis se for o caso. Eclodiu também um sem número de seguradoras especializadas nesse tipo de financiamento às expensas dos estudantes e suas famílias; estão no negócio a Caixa Econômica Federal, a Alfa Seguradora, Mapfre e BB seguros, entre outros.

No que tange às bolsas, trata-se de um incremento na forma de captura do mais-valor que se realiza duplamente (nas mensalidades, que serão pagas de qualquer modo, e no financiamento, que comportará o principal mais juros). No segundo caso, o financiamento público torna-se um modo refinado pelo qual o capital transforma uma parcela do fundo público em fundo de acumulação de capital. Tal se dá ora pela troca de bolsas por isenções tributárias, como no caso do Programa Universidade para Todos (Prouni), ora pela emissão de títulos representantes de dívida contra o Tesouro Nacional, como no caso do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES).

Embora no Brasil a crise de 2007-2008 e as sucessivas ondas em 2011 e 2014 crises estivessem no epicentro dos abalos políticos que levaram ao fim da experiência trágica da Nova República, com o golpe de 2016, esse foi, até o momento, o período de maior florescimento do capital de ensino superior. Foi nele que a concentração e monopolização atingiu níveis históricos inteiramente novos, processo que vem sendo chamado de financeirização do ensino superior, pois coincide e está articulado ao movimento de privatizações, desregulamentações e reorganização dos graus de intensidade de capitais nos diferentes momentos do ciclo de valorização do valor. Em razão desse grau de monopólio no ensino superior, em 2016, apenas dez empresas concentraram 42% de todas as matrículas privadas: Kroton (Cogna), Estácio de Sá, Unip, Laureate, Ser Educacional, Uninove, Cruzeiro do Sul, Ânima, Devry e Unicesumar (INEP, 2016; HOPER, 2018). Destas, os cinco maiores conglomerados – Kroton/Cogna, Estácio de Sá, Unip, Laureate e Ser Educacional – concentraram, em 2016, 2.099.800 de matrículas em todos os cursos (26,1%), 109.722 a mais do que as 1.990.078 (24,7%) matrículas públicas, patenteando que o propalado esforço governamental petista para aumentar o número de IES públicas não resultou em significativa expansão do número de estudantes. Mesmo por meio do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e da criação e expansão dos Institutos Federais de Educação Tecnológica o total de matrículas públicas (gerais) não ultrapassou a casa dos 24,7%.

No caso dos financiamentos públicos, tem-se uma forma a mais de apropriação de parcela do fundo público e sua reconversão em fundo de acumulação de capital, do qual o FIES constitui figura exemplar. Considerando que políticas como o Prouni e o Proies vieram para destituir a carga tributária das IES lucrativas, logicamente esses títulos sofrem carga muito reduzida de débitos em favor de tributações e contribuições diversas e passaram, então, a circular na esfera da valorização do capital portador de juros. As IES privadas lograram centralmente o loteamento das licenciaturas como campo privilegiado para a exploração mercantil de seus capitais – compensação pela gratuidade nas IES públicas e sua expansão nos cursos vinculados aos interesses das demais frações capitalistas no bloco dominante. Como o orçamento destinado às licenciaturas nas IES públicas é historicamente restrito, agravado pela Emenda Constitucional n. 95 (BRASIL, 2016), o setor privado viu nas licenciaturas – menos exigentes em termos de infraestrutura – um filão para capturar as frações com menor renda da classe trabalhadora.

Agregue-se que a EaD constitui-se como forma de colonizar o tempo livre da parcela dos trabalhadores que se ocupa com empregos precários, transporte público urbano sofrível, manutenção da vida familiar – sobretudo as mulheres, cujas tarefas crescem com a sobrejornada de trabalho doméstico. Ocupar o tempo livre, isto é, todo o tempo que corresponde ao trabalho imediatamente necessário, mas também o tempo de ócio que poderia ser dedicado às atividades mais elevadas (MARX, 2011), é uma tendência intrínseca ao modo de produção capitalista que justapõe a produção de maior tempo disponível à maior exploração de tempo de trabalho excedente. Semelhante situação dificilmente se resolverá enquanto a contradição das relações entre capital e trabalho não cessarem. Nos termos de Marx (2011, p. 494), isso decorre de que

[…] o tempo de trabalho como medida da riqueza põe a própria riqueza como riqueza fundada sobre a pobreza e o tempo disponível como tempo existente apenas na e por meio da oposição ao tempo de trabalho excedente, ou significa pôr todo o tempo do indivíduo como tempo de trabalho, e daí a degradação do indivíduo a mero trabalhador, sua subsunção ao trabalho.

Pôr a formação para o trabalho sob uma forma liquefeita que ocupa o tempo poroso dos trabalhadores, mesmo naquela diminuta parte que poderia estar disponível como ócio necessário, torna-se uma vantagem a mais. Se, por um lado, não coloca em xeque que toda a existência sob o capital é insalubre, por outro, possibilita maior controle deste tempo fora da jornada de trabalho. Nas sociedades capitalistas, o tempo foi gradualmente elevado à medida da riqueza e a essa métrica adaptou-se todo o vocabulário que também serve às coisas materiais e impessoais (eficácia, eficiência, intensidade, poupança, desperdício, escassez, abundância etc.). Como enunciado por Attali (1982, p. 199), “todas as formas antinômicas ao tempo útil, produtivo são, necessariamente, perigosas, o repouso faz temer o desperdício de tempo, a preguiça e a greve”. Nada mais adequado ao medo do “tempo livre” da classe trabalhadora que tem que lidar com a manutenção do emprego, com a escolarização “eficiente” dos filhos e com sua formação para ambos (sem mencionar o terrível quadro da Covid 19). 

O caso da Educação Básica

Ninguém poderá negar o papel fundamental da escolarização na formação de um povo. Não é por acaso que o capital enfatiza, por diferentes métodos, o papel da escola. Igualmente, procura obter sobre ela o máximo controle, atuando para traduzir em suas atividades de mediação sentidos de positividade em relação à sociedade, isto é, em relação ao capitalismo como única forma de existência social. Formas as mais variadas são criadas para esse fim. No front do capital encontram-se centenas de associações capitalistas, sob a forma de associativismo empresarial, militantes de disputas ideológicas sobre o sentido histórico e social da escola, do professor, das famílias no território escolar e das crianças e seus modos de aprendizagens. Revestido o litígio de neogerencialismo, de discurso técnico ou, até mesmo, de face humanista, jorram recomendações, emendas, projetos e ações capitalistas sobre o professor e sobre a escola, evidenciando a posição imprescindível da escolarização para o capital. Não é outro o sentido da ação intermitente de organizações como Todos pela Educação; Fundação Lemann; Fundação DPaschoal; Fundação Estudar; Instituto Inspirare; Instituto Unibanco; Instituto Natura; Instituto de Corresponsabilidade pela Educação; Movimento pela Base Nacional Curricular Comum; Fundação Itaú; Centro de Liderança Pública; Iniciativa Porvir; Ensina Brasil; Confederação Nacional da Indústria; Confederação Nacional da Agricultura; Sociedade Nacional da Agricultura; Associação Brasileira do Agronegócio; Movimento Brasil Competitivo; Casa das Garças; Fundação Getúlio Vargas; Núcleo de Estudos da Violência; Fórum da Liberdade; Programa de Reforma da Educação Latina e Caribe; Grupo Civita, entre muitíssimos outros.

O tempo presente é a principal testemunha de que, sob certas circunstâncias, o capital é capaz de tomar para a si todas as hipóteses de constituição da força de trabalho. Esse mesmo tempo – o da quarentena – está nos mostrando que, dessa ótica, há um gigantesco campo a ser desmatado!  Ademais de ocupar-se da formação docente, as novas fronteiras a serem conquistadas pelo capital cercam um vasto arco de investimentos, os quais vêm sendo difundidos por seus porta-vozes na mídia e por meio de seus Aparelhos Privados de Hegemonia. Intervenção explícita foi o “evento digital” promovido pelo Todos Pela Educação, Banco Mundial e Conselho Nacional de Educação, dia 8 de abril, com a participação da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e do Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed), numa evidente queda de braço com o Ministério da Educação e tendo em vista atingir seu objetivo pela via dos estados e municípios. Sem desconhecer que 42% das casas não têm computador, despejaram um sem número de proposições fincadas no senso comum, despontando “engajar estudantes e famílias e vincular o professor”. O senso comum destilado ignorou olimpicamente os debates entre docentes, pais e acadêmicos cujas reflexões apontam um rol de problemas nas “soluções criativas” em andamento.

As sugestões oferecidas pelas Organizações Multilaterais estão, óbvio, em andamento. No Rio de Janeiro, a parceria com o Google for education é do ano passado e foi potencializada nesse momento. Ao menos seis estados brasileiros fecharam parceria com o Google: Rio Grande do Norte, Ceará, Rio de Janeiro, Santa Catarina; Paraná e Rio Grande do Sul (UNESCO, 2020). No Paraná, os professores da Rede Estadual de Educação gravarão as aulas e elas, após serem transmitidas em canais de televisão pagos pelo governo, serão armazenadas no Google for education. Rio de Janeiro, Paraná e São Paulo divulgaram a possibilidade de firmar contrato com a “Claro, Vivo, Oi e Tim”. Goiás colocou em execução o “Ensino Médio à Distância” no ano passado e agora pretende expandi-lo para toda a rede (GOIÁS, 2020)[10]. A plataforma Google Classroom dobrou o número de usuários mundiais no último mês e chegou a mais de 100 milhões em decorrência da Covid-19. O Ministro da Educação da Itália ligou para o gerente do Google solicitando a continuidade das aulas por sua plataforma (VYNCK; BERGEN, 2020).

Poucos exemplos que confirmam a preocupação de políticos, empresas e Aparelhos Privados de Hegemonia em viabilizar esse formato de ensino, além de ocupar o tempo de um público que, em geral, pode ser visto como subversivo, caso das manifestações que antecederam a pandemia no Chile, capitaneadas por estudantes. Ao mesmo tempo, há a coerção de professores e alunos, vistos como resistentes a essas plataformas, para que as aceitem, haja vista a situação excepcional que dá amplos poderes ao Estado. Em matéria da Bloomberg (VYNCK; BERGEN, 2020, tradução nossa) afirma-se que os “que resistem aos produtos de base virtual como o Google Classroom terão sido forçados a usá-los e a se adaptarem.” Há um massacre em andamento.

O discurso que sustenta a necessidade das formas remotas de ensino na Educação Básica traz subjacente a ideia de que se os indivíduos “vulneráveis” ou muito “vulneráveis” não se mantiverem aprendendo durante a quarentena, suas condições desiguais não apenas se manterão, como se aprofundarão. A escola privada está na frente, bordão disseminado por alguns intelectuais, soa como chantagem e ameaça simultaneamente. O ensino remoto emerge, pois, como a caridosa varinha de condão que impediria um desastre maior que a própria morte: parar de aprender, ficar para traz e não poder enfrentar o futuro. Logra-se encobrir a separação entre escolarização e formação humana crítica, cujo distanciamento recrudescerá com a oferta de “criativas” estratégias remotas de ensino.

Nenhuma conclusão animadora à vista

As informações que arrolamos denotam ser estrategicamente relevante a hipótese de que a expansão das licenciaturas na esfera privada (e sua atrofia na pública) não decorreu de contingências meramente ocasionais, senão de uma ativa e dirigida política do capital sob a forma de ação propriamente estatal. Isto é, por meio do poder do Estado esses capitais dirigiram uma articulação que impactou frontalmente a formação do magistério nacional. Movimento assemelhado recai sobre a Escola Básica. O capital disputa duplamente a educação: constituindo para si um amplo conjunto de aparelhos privados de hegemonia que articulam, conjecturam e disputam seus projetos formativos no âmbito do Estado e, como ação estatal, produz ele próprio as condições sociais requeridas para que assuma diretamente a tarefa formativa por meio da detenção das IES que formam o magistério e de todo o aparato “tecnológico” que visa não prejudicar os estudantes durante a quarentena e, sem pejo, após ela. Ambas as formas têm largo alcance sobre o futuro nacional e visam certamente incutir as concepções que lhe são próprias sobre a infância, a criança, os jovens, as relações de mundo e aquelas que constituem os sujeitos, o propósito e o sentido histórico da educação escolar e o significado político da educação como formação do ser social.

Longe de esgotar tudo que essa problemática suscita, procuramos apresentar algumas reflexões que possam contribuir para as muitas disputas estratégicas e táticas com as quais nos deparamos no tempo presente em defesa de um sentido substantivo para a educação do povo brasileiro. É imperativo reconhecer o gigantesco avanço do capital sobre os processos formativos dos trabalhadores, seja nas grandes escolas particulares, seja nas redes públicas de ensino. Reestabelecer o lastro verdadeiramente público, constitutivo do direito dos milhões de professores e estudantes à formação substantiva, ampla, densa e multidisciplinar, é um dos pilares estratégicos da luta em defesa da educação para a classe trabalhadora. Relembrando: trata-se de 47,9 milhões de matrículas e 2,2 milhões de docentes em 180,6 mil escolas.

Importante ainda dizer que não estamos parados; muitas são as formas organizativas na contramão desse processo. Precisamos difundi-las, alargá-las, fortalecê-las.

Referências

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[1] Doutorando em Educação pela UFRJ, membro do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE- UFSC) e do Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (Colemarx UFRJ)

[2] Professora Voluntária na UFSC, Professora Sênior na UNOESC, Pesquisadora do Grupo de Investigação em Política Educacional (GIPE -UFSC).

[3] Parte das reflexões aqui sistematizadas foram publicadas em Evangelista, Seki e Souza (2019). Para os dados de matrículas no Ensino Superior sistematizamos, por meio de software estatístico, os microdados do Censo do Ensino Superior do INEP (2003-2018).

[4] INEP. Infográfico Censo Escolar 2019. Brasília, 2020. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/download/2019/infografico_censo_2019.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2020.

[5] Nos últimos dias, a Ânima Educação (SA:ANIM3) recebeu um empréstimo de “450 milhões […]. O empréstimo é o terceiro investimento da IFC na Ânima. O órgão participou como investidor-âncora na oferta inicial de ações (IPO) da Ânima em 2013 e apoiou o plano de expansão da empresa com um empréstimo de 139 milhões de reais em 2016. Segundo a Ânima, os novos recursos serão usados para reforçar o caixa da companhia e apoiar o programa de crescimento via aquisições” (INVESTING.COM, 2020).

[6] Disponível em: <https://educador.brasilescola.uol.com.br/noticias/grupo-libera-acesso-a-cursos-e-livros-on-line-para-educadores-durante-isolamento/33269.html> . Acesso em 14 abril 2020.

[7] A Eleva é mais uma das empresas do grupo de Jorge Paulo Lemann, sua fundação a “Fundação Lemann, está montando uma grande estrutura de aprendizagem remota para que os 40 milhões de alunos da rede pública de educação possam ter aulas e acesso a conteúdo didático” (KOIKE, 2020).

[8] Disponível em:  <https://midiabahia.com.br/estacio-e-eleva-criam-plataforma-digital-gratuita-para-ajudar-alunos-da-rede-publica-com-enem/> Acesso em 14 abril 2020.

[9] O lucro das empresas educacionais com capital aberto na bolsa de valores, em 2019, é exemplar; a Estácio de Sá (YDUQ3) teve lucro líquido de 684,4 milhões (Voglino, 2020), a Ser Educacional (SEER3) 136,3 milhões, a Cogna (COGN3) R$ 771,09 milhões (Lazarini, 2019). A maior parte desses grupos contrata empréstimos da International Finance Corporation, braço financeiro do Banco Mundial para aquisições e demais operações.

[10] GOIÁS. Recursos tecnológicos são aliados da SEDUC nas aulas não presenciais. 25/03/2020. Disponível em: <https://site.educacao.go.gov.br/educacao/recursos-tecnologicos-sao-aliados-da-seduc-nas-aulas-nao-presenciais/>. Acesso em: 12 abr. 2020. UNESCO. Respuestas educativas nacionales. 13/04/2020. Disponível em: <https://en.unesco.org/node/320783>. Acesso em: 12 abr. 2020.

Olinda Evangelista

Professora, pesquisadora de políticas públicas em educação e formação docente, bordadeira.

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